É impressionante o lobby da indústria de alimentos, a pressão que exerce para limitar a regulamentação e o controle pelas autoridades sanitárias da fabricação, distribuição e propaganda da comida que a população compra e consome, distraída demais para prestar muito atenção à qualidade da mercadoria.
O fenômeno é mundial, mas vemos um esforço extra no Brasil para impedir que o consumidor receba mais alertas sobre alimentos, como os que partem da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), uma entidade que existe justamente para exercer esta função: proteger a saúde do público.
Veja-se o que ocorreu recentemente, quando a Anvisa baixou resolução com regras para a propaganda de alimentos com gordura e açúcar demais. A indústria estrilou logo, através de seu órgão de classe, a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia).
A entidade empresarial foi habilidosa o suficiente para não ir contra o espírito de proteção da saúde contido no alerta da agência pública. Em vez disso, usou argumentos contorcidos de que as restrições significavam uma ameaça à liberdade de expressão (das agências de publicidade que promovem alimentos) e uma violação da Constituição.
Quer dizer então que um órgão público encarregado de proteger a saúde dos cidadãos não pode exigir que os fabricantes de alimentos e os encarregados de promovê-los alertem o público sobre a presença de substâncias que podem lhes fazer mal?
O que a Anvisa pretende é inibir o consumo excessivo de alimentos danosos; daí sua resolução para que os produtos à venda contenham alertas, como o que deverá dizer na propaganda: “(esta marca) contém muito açúcar e, se consumida em grande quantidade, aumenta o risco de obesidade e de cárie dentária”. Sensato, não? Só que a indústria e os publicitários consideram essa iniciativa da agência sanitária uma intromissão indevida em suas atividades. Ora, é não apenas um direito mas uma obrigação da Anvisa agir assim.
Uma pesquisa recente do Ministério da Saúde revelou que mais de 46% da população brasileira está acima do peso considerado razoável, situação que resulta sobretudo do consumo maior de alimentos industrializados e refeições prontas, que apelam para o uso intenso de açúcar e sal, além de conservantes químicos.
A necessidade de alertar o público é maior ainda quando o alvo principal da propaganda são crianças, mais vulneráveis ao consumo de alimentos e bebidas com excesso de açúcar, gordura ou sal. Estudos internacionais demonstram que a vontade das crianças pesa na escolha de até 80% do que as famílias compram para comer e beber.
Aqui no Reino Unido, há muitas restrições à propaganda destinada a crianças. Comerciais rotineiros na programação infantil da TV brasileira não seriam aprovados pelas agências britânicas controladoras do setor. Será que isso ocorre aqui porque os britânicos não têm liberdades, a democracia de 800 anos é fajuta, o direito de expressão não existe, a censura é ameaçadora, conforme a argumentação que o lobby do setor usa no Brasil, para evitar controle de suas práticas?
Ainda assim, como a promoção de comida e bebida em horários “não infantis” prossegue no Reino Unido, mesmo sob restrições, crianças aqui acabam tomando conhecimento da existência de, por exemplo, lanchonetes como McDonald”s e suas atrações cheias de sal e gordura, além das frituras, e assim exigem dos pais que comprem os produtos anunciados.
Surge daí a preocupação, já presente no Brasil, inclusive no Congresso, de examinar o efeito da publicidade dirigida a crianças. Uma pesquisa encomendada pelo Projeto Criança e Consumo ao Datafolha, revelou que 73% dos pais concordam com algum tipo de restrição à publicidade focada em crianças. Outro estudo (Instituto Sensus, 2007) constatou que 58% dos pais nem ao menos sabem o que os filhos veem na TV.
Um Fórum Internacional Criança e Consumo, realizado em São Paulo em abril, tratou dos impactos negativos da mercantilização na infância, com participação de especialistas internacionais, como a psicóloga americana Susan Linn. Ela alertou para a necessidade de regulamentar a propaganda dirigida ao público infantil, alvo de uma artilharia de venda de produtos, desde o acordar até a hora de dormir, incluindo os períodos na escola e no lazer.
“Todos esses momentos estão tomados pela publicidade, pelo marketing ou pelos produtos licenciados de heróis ou personagens da TV”, disse a psicóloga. Referia-se naturalmente aos Estados Unidos, mas ninguém tem dúvidas de que o Brasil acompanha a tendência.
Chega-se até a inibir as velhas brincadeiras de crianças nas ruas ou nos pátios das escolas, complementou outro participante do Fórum, o sociólogo americano Benjamin Barber.
– O mercado quer impedir que as crianças brinquem – alertou Barber – porque quando isso acontece elas não precisam de nada além da imaginação, e isso não rende lucros comerciais.
Isso me lembra uma entrevista que fiz este ano com o sociólogo britânico Steve Fuller, da Universidade de Warwick, no interior da Inglaterra. Ele defende o ensino de técnicas de mídia a crianças de nível primário e secundário, para que elas aprendam desde cedo os truques e as possibilidade de manipulação das mensagens, sejam políticas ou comerciais.
A memória me levou também a uma entrevista ainda mais recente que fiz aqui em Londres com Felicity Lawrence, autora do livro Eat Your Heart Out, um título de tradução literal difícil, porque envolve uma expressão de duplo sentido no original, mas que pode ser descrito melhor pelo subtítulo: Porque o Negócio de Alimentação é Ruim para o Planeta e Para a Sua Saúde.
Lawrence correu mundo (inclusive o Brasil) pesquisando o assunto e sustenta que a indústria mundial de comida nos alimenta mal, cria hábitos pouco saudáveis e nos entope de substâncias danosas ao organismo, enquanto acumula lucros bilionários. Diz que grandes empresas multinacionais dominam o setor e fogem da transparência que revelaria ao público suas práticas nocivas.
Mais pertinente ao que tratamos neste artigo, ela lembra que o consumidor mal tem tempo para fiscalizar a mercadoria que compra para sua família comer, sem perceber quando é manipulado pela má-informação.
Em meio a uma discussão desse tipo, fica difícil levar a sério o argumento da indústria e seus defensores no Brasil de que as tentativas da Anvisa de informar melhor o cidadão, a fim de proteger sua saúde, constitui abuso à liberdade de expressão.
FONTE: Gazeta Digital