Direito a infância

Direito a infância

Porque criança pode, tem de poder, ser criança

Direito a infância

Edição 427 – Outubro de 2005

Por Mônica Dallari, mãe de Bruno, João e Dalmo

Toda criança tem direito a brincar

Brincar é sinônimo de infância. Ou deveria ser, pelo menos. É brincando que a criança aprende        tudo: como funciona o mundo, a se relacionar, a lidar com as emoções…

“Nunca conseguiremos criar homens sensatos se antes não criarmos moleques”, dizia o filósofo francês Jean-Jacques Rosseau (1712-1778) no clássico Emílio. Na Grécia Antiga, o filósofo Aristóteles (384-322 a.C.) já dizia que “brincadeira é coisa séria”. Ou seja: não tem o menor sentido a gente encher os filhos de cursos de inglês, francês, japonês, computação… querendo que eles sejam bem-sucedidos no futuro se eles não tiverem o básico: tempo para brincar.

Esse direito é tão fundamental que foi incluído na Declaração das Nações Unidas dos Direitos da Criança em 1959 e reiterado em 1990, quando a ONU adotou a Convenção dos Direitos da Criança: “Os Estados reconhecem o direito da criança de descansar e ter lazer, de brincar…”.

Quando a criança brinca, conhece a si mesma e ao outro. Descobre o mundo e exercita novas habilidades. Essa atividade tão importante acontece desde antes do nascimento. “Ainda no ventre, os bebês têm suas brincadeiras, como chupar o polegar”, diz Dr. Leonardo Posternak, pai de Luciana e Thiago, colunista da Pais e Filhos e presidente do Instituto da Família. Nosso papel é só deixar que eles continuem se divertindo aqui fora.

O psiquiatra e psicanalista José Outeiral, pai de Marcelo, Pedro, Felipe, Clarisse e Júlia, relembra a origem no latim da palavra. “Brincar vem de vinculum. Quando alguém brinca, cria vínculo. Essa atividade espontânea, diferentemente do jogo de regras, é essencial ao desenvolvimento cognitivo, psicomotor e afetivo.”

É por meio das brincadeiras que os filhos elaboram saídas para as situações de conflito. Já reparou como eles mandam os brinquedos irem dormir como você faz com ele? Então. Ao criar, fantasiar e entrar em contato com a subjetividade, a criança aumenta a auto-estima. “É assim que ela aprende a resolver problemas, projetando anseios e preocupações, descobrindo que na vida existem regras”, diz a psicopedagoga Jane Maria Barbosa Bronzeri, mãe de Rodrigo, Bruno e Plínio.

Brincando, a criança vivencia situações com que irá se defrontar na vida adulta. “Quando cresce, no inconsciente, ela já terá elaborado os momentos de dificuldade que irão surgir.” Divertindo-se, ela se põe no lugar do outro, se expõe, aprende a perder, a ganhar e a não se arriscar desnecessariamente.
O problema é que a brincadeira está virando artigo escasso. “Na vida moderna, vem tudo muito pronto e os pais não têm tempo para se divertir com seus filhos”, lamenta Jane Maria. E as conseqüências para a criança que não brinca são sérias: pode ter dificuldade de entrar em contato com a própria afetividade e não ter jogo de cintura para lidar com conflitos. O ato de brincar é lúdico e prazeroso, mas é também pragmático”, constata a psicopedagoga. E isso afeta positivamente até aquele aprendizado que a gente, equivocadamente, às vezes acha mais importante do que uma boa diversão. Quem brinca agora aprende a encontrar soluções criativas no trabalho, nos relacionamenros, na vida. Ou seja, mais do que matricular os filhos em cursos disso ou daquilo, ouça Rousseau: deixe-as brincar.

Toda criança tem direito a errar

Não tire de seu filho o supremo direito de cometer os próprios erros. Nossas crianças estão com medo. E o pior deles não é de monstro debaixo da cama nem de ladrão. Elas ficam em pânico só de pensar na possibilidade de cometer um erro. Sim, errar é humano, mas até aí… Queremos de nossos filhos algo próximo da perfeição. O resultado é que, muito exigentes consigo mesmos, eles evitam enfrentar o desconhecido com medo do fracasso.

“As crianças estão sendo cobradas desde muito cedo”, alerta a psicóloga e pedagoga Elizabeth Monteiro, mãe de Gabriela, Samuel, Tarsila e Francisco. E o mais preocupante é que isso atinge até os bem pequenos. Olha o absurdo: com 3 anos, já há crianças que começam a apresentar bloqueio de aprendizagem. O problema se agrava aos 5 ou 6 anos, na época da alfabetização. Ao deparar com uma dificuldade, preferem desistir a correr o risco de falhar. “O espírito de uma criança de 3, 4 anos é tentar um meio de conseguir fazer as coisas, mas se, em vez disso, ela diz ‘não quero, não sei’ porque não existe lugar para o erro, ela procura algo que já saiba fazer”, diz Elizabeth.

Pensando em como desejamos que nosso filho seja no futuro, deixamos de enxergar a criança que ele é hoje. Ao decidir ter bebê, muitos casais sonham com um sucessor que irá prolongar a existência da própria família. Então, surge a fantasia de compensar as faltas ou os excessos que tiveram na infância.
Ao tentar proporcionar tudo o que gostaríamos que nossos pais tivessem feito por nós, como se fosse possível reparar as faltas que vivenciamos, projetamos o filho ideal.

Com o peso da responsabilidade de não decepcionar, a criança se esforça para não ser rejeitada. “Todos os pais amam seus filhos, mas é preciso não querer tranformá-los no melhor, e sim aceitá-los como são.”
Se você quer que ele seja feliz agora e depois, deixe-o tropeçar, ralar o joelho, trocar as peças do jogo… Toda criança tem o direito de errar, tentar outra vez, descobrir novos caminhos, acertar e voltar a errar… “Os pais devem se dar conta de que, mais do que perseguir seus projetos nos filhos, devem permitir que eles alcancem a plenitude das próprias possibilidades”, diz o psicanalista João Augusto Pompéia, pai de Mirna, Pedro e Paulo. E, para isso, só cometendo os próprios erros.

Toda criança tem direito a se sujar

Sujeira não significa necessariamente doença. Enfiar o pé na lama, brincar de plantar, mexer na argila ajudam seu filho a crescer livre e autoconfiante, além de fortalecer o sistema imunológico.

Criança adora se sujar. Ou, pelo menos, não ter de se preocupar em ficar limpinha. Enfiar o pé na lama é uma delícia. Além de experimentar novas sensações, como a areia escorrendo por entre os dedos, essa farra é importante para o desenvolvimento emocional e até para fortalecer o sistema imunológico. Para alguns cientistas, o excesso de preocupação com a higiene tem evitado o contato dos guris com vírus, bactérias, fungos… Sem agressores externos, o organismo se volta contra si próprio. Por isso, hoje há tantas crianças alérgicas.

Hoje, passamos a maior parte do tempo em ambientes fechados. Ao ar livre não dá nem 2% do dia. Então, além de poder se sujar, toda criança precisa ter, sim, o direito a brincar lá fora. Como a formação do sistema imunológico dela só se completa aos 12 anos, deixe que a boa sujeira tome conta da brincadeira. Claro que isso não inclui permitir que eles corram em locais cheios de lixo, sem higiene ou com esgoto a céu aberto. A pediatra e imunologista Ana Paula Castro, mãe de Lucas e Mariana, fala em “sujeira responsável”, aquela da terra do quintal ou do sítio.

Poder brincar livremente deixa as crianças na maior felicidade, faz com que elas se soltem, se tornem mais generosas e enriquece seus espíritos. E é uma boa forma de aliviar as tensões. Aprender a lidar com a sujeira também pode ser educativo. “Atividades desse tipo facilitam a aprendizagem do controle do xixi e do cocô”, afirma a psicóloga e pedagoga Elizabeth Monteiro.

A criança que é sempre prevenida para não se sujar torna-se cautelosa, com medo de aborrecer os pais. Esse comportamento irá se refletir em outros momentos da vida, quando ela poderá evitar desafios, temendo desagradar. Se você é do tipo maníaco por limpeza, estabeleça limites geográficos para a bagunça e guarde o paninho.

Toda criança tem direito a chorar

A gente quer ver as crianças sorrindo sempre, mas chorar faz bem, alivia e ajuda a acalmar. É impossível saber quando os seres humanos começaram a chorar, mas os bebês pré-históricos que nos transmitiram seus genes com certeza foram aqueles que faziam escândalo, diz Dr. Harvey Karp, em O Bebê Mais Feliz do Pedaço. Impossível deixar de responder a um som tão potente. Quando um bebê chora, o sistema nervoso dos pais entra em alerta: o coração dispara, a pressão sobe, o estômago se comprime. O choro nos atinge como um choque elétrico.

Bebês choram muito porque não têm  outras maneiras de se comunicar. Com o tempo, as crianças aprendem a manifestar seus sentimentos de vários modos. O choro é apenas um, tão legítimo quanto os outros. Talvez seja difícil aceitar o choro dos nossos filhos porque o ligamos a momentos de nossa vida em que nos sentimos infelizes e não queremos que eles se sintam assim.

Mas chorar é um direito inalienável. E, além disso, um ato tão necessário quanto respirar. Se a criança não chora, corre o risco de se fechar, não conseguindo liberar a emoção que a incomoda. “O choro é o ápice de uma tensão que chegou a seu limite”, afirma a psicóloga Olga Inês Tessari, mãe de Thaiz. E há razões científicas para defender esse direito: ao chorar, o cérebro libera endorfina, que bloqueia os receptores da dor e produzem a sensação de alívio e bem-estar. “O choro relaxa e ajuda a criança a se acalmar”, afirma Olga.

Já maiorzinha, ela vai continuar chorando por outros motivos. Tristeza, por exemplo. Ninguém é feliz todo o tempo, claro. Mas a gente quer que o filho seja, vai dizer que não? Muitos pais, já culpados com o excesso de trabalho, se apavoram diante da possibilidade de verem seus filhos sofrendo e tentam evitar o sentimento,.
Mas quem engole o choro não vive a dor e não pode superá-la. Ao manifestar as emoções, as crianças aprendem a viver o momento presente e a enfrentá-lo, mesmo que seja uma situação de dor irreparável. Por isso, se alguém querido morreu, não esconda delas. A hora de saber é o momento em que acontece. Você pode chorar com ela. Você está triste também.

Chorar faz bem a todo mundo, independente do sexo. Aos poucos, os meninos começam a se liberar do antigo preconceito de que “homem não chora”. E isso é uma evolução. O apoio e a compreensão dos pais na hora da tristeza são fundamentais. Um colo acolhedor, mais ainda. Entender o sentimento e poder falar dele ajuda na superação. As mudanças que ocorrem no momento de tristeza auxiliam o cérebro a liberar a dor e a seguir em frente. “Criança tem a necessidade e o direito da verdade. Saber que pode sentir dor, tristeza e saudade é bom, são sentimentos que ‘não matam’, ao contrário, podem ajudar a entender e a crescer”, defende o pediatra Leonardo Posternak, no livro O Direito à Verdade. Portanto, não tire de seu filho o direito de ficar triste. Assim ele vai estar inteiro, enfrentando a vida, do jeito dele, sabendo que sempre terá seu colo.

Toda criança tem direito a sentir raiva

Reprimir só causa problemas, é preciso aprender a lidar com ela. A raiva é um dos sentimentos mais malvistos na nossa cultura. A ira é um dos sete pecados capitais, quem sucumbe a ela vai parar, no mínimo, no Purgatório antes de merecer o Paraíso. Por isso a gente lida tão mal com ela e, quando o filho tem um ataque, a reação é reprimir na hora: “que coisa feia!”. Mas sentir raiva não é errado. Todo mundo sente, afinal.

A raiva é um instinto de liberdade e autopreservação, um sentimento importante do ser humano para se defender. Acontece que o primeiro impulso da criança ao se irritar com algo é transformar essa irritação em um gesto violento, que surge de maneira explosiva. “Dizer simplesmente que raiva é errado não a faz desaparecer”, explica o psicanalista e educador Rubem Alves, pai de Sérgio, Marcos e Raquel. “A raiva não pode ser eliminada por um ato de vontade, os sentimentos em si mesmos não são errados”, completa. A raiva, afinal, vem da indignação. A fúria, com chutes, mordidas e tapas, é o sentimento exacerbado.
Lidar com o sentimento é tão difícil para as crianças como para os pais. Ao dar palmadas em uma criança que bateu em um amigo e está no meio de um acesso de raiva, a mensagem pode ser contraditória: “Estou te batendo para te ensinar a não bater”.

A dificuldade da criança é acertar a intensidade da raiva e encontrar um equilíbrio entre o sentimento e a ação. Um bom caminho é dar alternativas para ela extravasar em ações não violentas. Brincadeiras de luta entre pai e filho não estimulam a violência, como alguns pensam. Pelo contrário: as crianças aprendem com o pai o limite a que podem chegar, um passo para o autocontrole. Em creches, por exemplo, é comum o uso do João-Teimoso ou João-Bobo (boneco inflável que vaivém) para os pequenos descarregarem a raiva. Melhor no boneco do que no amiguinho, com certeza.

Racionalizar o sentimento exige anos de prática, e por isso a gente deve ajudar a criança nesse difícil aprendizado. E isso, nunca é demais repetir, não significa que ela vai deixar de senti-lo. Toda criança tem esse direito. Dá raiva mesmo ver o irmãozinho ganhando colo enquanto temos de esperar a nossa vez.

FONTE: Revista Pais e Filhos

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