O psiquiatra Richard Graham, 48, lidera desde março de 2010 um serviço de atendimento no hospital Capio Nightingale, em Londres, voltado a jovens viciados em tecnologia. A instituição particular tem diferentes tipos de tratamentos para aqueles que não conseguem se desconectar – entre eles, uma internação em que o paciente passa cerca de um mês vivendo no local, sem acesso a computadores.
Graham recebeu o UOL Tecnologia no consultório de um hospital psiquiátrico público, onde também trabalha em Londres, e falou sobre esse tipo de vício que, segundo ele, pode levar até à morte (o médico cita o caso de um britânico que morreu vítima de um coágulo em sua perna depois de tanto jogar no computador). A dependência, de acordo com o psiquiatra, é agravada pelas redes sociais, onde há uma pressão do grupo para que o usuário esteja sempre online.
“O excesso de tecnologia esgota o cérebro da mesma forma como acontece com a depressão e como acontece com o uso de anfetaminas, por exemplo, que dão muita empolgação para depois deprimir”, explicou.
O preço cobrado pelo hospital de Londres varia de acordo com o tipo de tratamento. Graham não divulga valores, mas compara: pode chegar a muitos milhares de libras esterlinas por semana, um montante parecido àquele gasto na internação de dependentes químicos. Em São Paulo, o Hospital das Clínicas tem um programa gratuito para tratamento de viciados em internet baseado em acompanhamento psicológico e psiquiátrico do paciente. A alternativa, no entanto, não conta com internações.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista com o psiquiatra britânico.
UOL Tecnologia – Como o senhor entrou em contato com o universo de pessoas viciadas em internet?
Graham – Há cerca de oito anos, no hospital [psiquiátrico Tavistock and Portman], comecei a perceber muita incidência de pacientes relatando casos de depressão, ansiedade, distúrbios alimentares, autoflagelo, suicídio, etc. Fiquei interessado principalmente nos casos de jovens com problemas que pareciam estar relacionados ao fato de eles jogarem videogame. Também havia garotas enfrentando dificuldades específicas causadas por comunicadores instantâneos e as primeiras redes sociais, como Meebo e MySpace.
Mas os gamers [jogadores] pareciam ter problemas maiores. Há cerca de sete anos, atendi um garoto que jogava Xbox com pessoas de todo o mundo e isso estava afetando seu comportamento, seu sono. Ele passou a enfrentar problemas ainda maiores quando começou a jogar “World of Warcraft”. O jogo tinha um efeito tão poderoso sobre ele que me fez pensar que o mundo estava mudando, havia algo novo acontecendo.
Essa história chegou a seu extremo quando, no dia das mães, a família pediu que o jovem parasse de jogar para participar do almoço. Quando ele se recusou, os pais desligaram o modem, que dava acesso à internet, e ele ficou muito agressivo. Quebrou objetos e deixou seus pais muito assustados, porque perdeu o controle. Foi preciso chamar a polícia para contê-lo. Foi quando percebi que a vontade de ficar no computador poderia ser parecida com um vício: quando a pessoa para, fica muito ansiosa, nervosa, desesperada para continuar.
UOL Tecnologia – Foi então que surgiu o serviço para cuidar de dependentes de tecnologia?
Graham – A partir daí, comecei a ouvir muitos casos parecidos. Dois anos atrás começamos a desenvolver o serviço no hospital Capio Nightingale, onde esse jovem, por exemplo, poderia ter sido levado para ficar seguro nos primeiros dias sem computador. Seria uma melhor oportunidade de ajudar a ele, a seus pais, e a gerenciar a situação de uma forma melhor.
UOL Tecnologia – Quantas pessoas já foram tratadas até agora no hospital?
Graham – Não muitas, possivelmente de 30 a 40. Poucas ficaram internadas.
UOL Tecnologia – E como é esse tratamento para viciados em internet?
Graham – Ainda não tivemos muitas pessoas internadas [na maioria dos casos, os pacientes fazem sessões de terapia específicas para o problema]. Basicamente, o tratamento tem o que chamamos de higiene da tecnologia, para saber qual a jornada do paciente pela tecnologia, quando e como ele começou a usar. Descobrimos muitas vezes, por exemplo, que eles começaram a jogar muito mais quando seus pais se divorciaram, quando tiveram de se mudar ou quando sofreram bullying.
Também fazemos pensá-los sobre o que perdem por causa da tecnologia. Se seu amigo sempre bate em sua porta lhe convidando para algo e você diz não, porque está no computador, um dia ele vai parar de chamar. Você pode perder provas na escola. Fazemos o paciente ver que perde muito. Teve um paciente internado que, só ao voltar para a casa do avô, durante o tratamento, entendeu que sua avó havia morrido seis meses antes. Ele já sabia disso, mas estava tão absorvido em seu mundo que não percebeu. Outras pessoas não percebem, por exemplo, a decoração de um ambiente porque perdem a visão daquilo que acontece a sua volta.
Para entenderem o quanto perdem, muitas vezes somamos as horas passadas no computador. Com os jogadores de “World of Warcraft” é fácil fazer isso. Se ele jogou muito por três anos, pode descobrir que passou 300 dias como um personagem e outros 150 dias com outros. Ou seja: metade de sua vida recente foi passada no game. Já os usuários que passam seis, oito ou dez horas por dia no computador podem descobrir que passaram muitos dias online durante o ano.
UOL Tecnologia – E qual seria o uso adequado da tecnologia?
Graham – Hoje, por causa dos smartphones, é difícil conseguir gerenciar o uso saudável da tecnologia. Acho que nenhum de nós sabe quais as diretrizes ideais para isso, mas pensamos que mais de três horas de tela por dia pode fazer com que você queira mais e mais disso.
UOL Tecnologia – Esse limite de até três horas seria aconselhável para todos os usuários ou para quem já tem problemas com a tecnologia?
Graham – Para quem já tem problemas, mas essa é uma boa questão. Grande parte do que chamamos de vício está ligada à parte social. As pessoas não se viciam em Microsoft Office, por exemplo. E aqueles que jogavam em consoles, no passado, não ficavam conectados por 14 horas, como acontece hoje com os jogadores de “World of Warcraft”.
Nesses ambientes sociais você está envolvido com outras pessoas. A pressão para ficar naquele universo não é só sua, mas também do grupo. Alguns gamers conseguem parar de jogar por algum tempo, mas então seus amigos pedem que eles voltem. Ou o mestre do jogo dirá que espera ele lá, jogando todos os dias.
Cada vez mais os diferentes aspectos da tecnologia estão se aproximando. O que parece um jogo é também uma rede social, pois permite conversar com pessoas de todo o mundo. Seus amigos estão nesse jogo, aqueles que o apoiam estão nesse jogo, suas vitórias estão nesse jogo. Da mesma forma, há games disponíveis no Facebook. Por isso o serviço do Capio Nightingale se chama centro de recuperação de pessoas viciadas em tecnologia, e não só de viciados em games.
UOL Tecnologia – Para quem fica internado no hospital, como é o tratamento?
Graham – Eles ficam em um quarto com banheiro, sem acesso ao computador, com muito conteúdo para ler e participam de diferentes atividades durante o dia. Conversamos com eles sobre tecnologia, sobre suas relações com as pessoas e eles são encorajados a fazer ginástica, a sair para passear na companhia de enfermeiros.
Eles são muito ansiosos. No começo, têm medo de sair até para ir a um mercado em frente ao hospital, para comprar um chocolate ou um jornal. Mas depois de três ou quatro dias já é possível ver mudanças no humor deles, que ficam mais sociais, mais ativos, comem melhor, falam melhor e ficam mais confiantes. O tratamento leva em média 28 dias.
UOL Tecnologia – O serviço é voltado para jovens. Por quê?
Graham – Cerca de 75% dos problemas psicológicos têm início antes de a pessoa se tornar adulta. É mais fácil ajudar uma pessoa nesse estágio inicial a não desenvolver um grande problema do que ajudá-la quando o problema já está grande. A ideia de realizar uma intervenção cedo é prevenir que o problema cresça, ajudando o paciente a voltar para um caminho saudável.
Além disso, não havia nenhum tratamento específico para jovens viciados em tecnologia em nenhum outro lugar [na Inglaterra]. Então, com 17 ou 18 anos, eles poderiam conseguir ajuda, mas aí estariam junto a adultos, que enfrentam problemas muitas vezes misturados ao uso de substâncias químicas. Esse não é o ambiente mais esperançoso para um jovem buscar ajuda.
UOL Tecnologia – O site do hospital diz que o preço do tratamento depende do programa que é recomendado ao paciente. Pode dizer quanto custa?
Graham – Não, mas é caro. Muitos milhares de libras por semana.
UOL Tecnologia – Seria um valor equivalente a uma internação para dependentes químicos.
Graham – É um valor similar, acredito.
UOL Tecnologia – Quando alguém tem alta do tratamento, o que não pode voltar a fazer?
Graham – Não pode gastar tanto tempo no computador quanto fazia antes, tem de controlar o acesso. Não podem voltar a usar a internet ou a jogar como faziam, porque senão voltam rápido para a mesma situação.
Uma das dificuldades relacionadas à recuperação em muitos tipos de vícios é a reconstrução da vida, porque o paciente pode não ter mais amigos fora do computador, por exemplo. Ele pode não ter mais nada para fazer durante o dia, então terá de fazer um curso, procurar emprego, sair de casa.
Quando o tratamento funciona bem, os pacientes se entediam com aquilo que faziam antes. Há menos pressão para voltar aos velhos hábitos porque eles podem não achá-los tão interessantes.
UOL Tecnologia – Quais os casos mais extremos de pessoas viciadas em tecnologia?
Graham – Teve um jovem que, quando foi proibido de usar o computador, ameaçou bater em sua mãe com um taco de baseball. Ele não bateu na mãe, mas atingiu objetos. Alguns ameaçam suicídio, fogem da casa e vão para o meio dos carros, na rua. Isso é assustador, estamos falando de comportamentos extremos.
UOL Tecnologia – A pior consequência do vício em drogas é a overdose. Pessoas viciadas em jogo podem perder muito dinheiro. E quais podem ser as piores consequências do vício em tecnologia?
Graham – A morte.
UOL Tecnologia – Alguém pode morrer de tanto usar internet?
Graham – Sim. Tem o caso de um jovem de 20 anos na Inglaterra, no ultimo verão [entre junho e agosto], que morreu vítima de um coágulo que apareceu em sua perna. Isso depois de ele jogar no computador por muito tempo. Já tinha casos parecidos na Coreia do Sul, mas esse foi o primeiro que tive conhecimento na Inglaterra. Os riscos são muito claros.
Se a pessoa joga muito ela provavelmente não se exercita, come mal, fica mais fraca, menos saudável, tem depressão ou fica ansiosa. Também há casos de pacientes que entram em um estado paranoico.
Existe um pensamento de que alguém pode jogar muito por estar deprimido. Nesse caso, tratando a depressão, a pessoa poderia se sentir melhor e parar de jogar. Isso pode funcionar, mas não é tão poderoso quanto parar de usar o computador. O excesso de tecnologia esgota o cérebro da mesma forma como acontece com a depressão e como acontece com o uso de anfetaminas, por exemplo, que dão muita empolgação para depois deprimir.
UOL Tecnologia – Quando pensamos em viciados em internet, a imagem é de uma pessoa usando um desktop. Mas temos cada vez mais smartphones e outros portáteis com acesso à web. Como eles mudam esse vício?
Graham – Nesses casos, é preciso pensar o que você faria se não tivesse seu telefone celular por perto. Quão mal você se sentiria sem ele? Você o coloca como uma prioridade? A máquina sempre vem antes?
Às vezes a tecnologia funciona como um ursinho de pelúcia: você se sente confortado de tê-la por perto. Ela é amigável, você gosta dela e a leva para todos os lugares com você. Se você tirar o ursinho de pelúcia de uma criança, ela vai chorar.
Tem também as situações quando isso tudo fica mais compulsivo, quando você checa o tempo todo as mensagens e quer ficar online mais e mais e mais. Há pessoas que não conseguem desligar seus smartphones, não conseguem viver sem eles, não iriam para qualquer parte do mundo sem sinal de internet. Há diferentes tipos de dependência no uso.
FONTE: UOL Tecnologia