Dividindo experiências…
Na mais recente edição dos Cadernos de Educação de Infância, publicação da Associação de Profissionais de Educação de Infância, com sede em Lisboa, Portugal, tem um artigo da Jordana Botelho, Coordenadora Pedagógica do Ensino Fundamental aqui na Trilhas.
O texto “Espaço e currículo intrinsecamente ligados: dividindo experiências” relata um pouco das práticas pedagógicas da Trilhas, que inspiram e são consideradas referência para outras escolas. Abaixo, veja fotos do artigo publicado e na sequência, o texto na íntegra.
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Leia abaixo o texto publicado:
Espaço e currículo intrinsecamente ligados: dividindo experiências da Escola Trilhas
Por Jordana Stella Botelho Coordenadora Pedagógica
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O modo como um espaço escolar é concebido, estruturado e utilizado pelas crianças guarda uma estreita relação com a filosofia da escola, com suas concepções de infância, de ser humano, de sociedade. “Todo o espaço escolar, em suma, nos fala, de modo expresso ou simbólico, do tipo de educação que nele se dá” (VIÑAO FRAGO, 2000, p. 99, tradução nossa). Seguindo nessa direção apontada por Frago, nos certificamos da importância do espaço para a concepção de ensino-aprendizagem, uma vez que possibilita, restringe ou impede a realização de atividades, ordenando e conformando o currículo de um modo ou de outro. Sim, o espaço educa! E pensando nos primeiros anos em que a criança entra em contato com a instituição “escola”, especialmente na etapa da Educação Infantil (0 a 6 anos), cremos que a configuração desse espaço exige um olhar ainda mais diferenciado e cuidadoso.
Na Escola Trilhas, situada na cidade de Curitiba, sul do Brasil, essa preocupação existe desde que foi criada, em 1994, pelas educadoras Maria Inês Galvão e Ivanir Irene Dedecek. Colocando-se no cenário curitibano como uma proposta alternativa a várias instituições voltadas para o trabalho com a criança pequena de 1 ano e meio aos 6 anos, à época, foi crescendo e firmando seu modo de conceber a educação infantil. E, sem dúvida, as escolhas feitas em relação à estruturação do espaço são aspectos que assumem relevância dentro da sua proposta pedagógica. Atualmente a escola ocupa uma área de 8000 m2. É um espaço repleto de magia e de possibilidades de aprender, em contato com a natureza, com uma estrutura física cuidadosamente planejada.
Ao ar livre, possui amplos pátios, bosque, horta, brinquedos, parquinhos, muita areia, pedrinhas, árvores. Já os espaços internos de aprendizagem são distribuídos em cinco casas: Casa do Bosque, Casa do Girassol, Casa dos Ipês, Casa dos Hibiscus e Casa das Laranjeiras. Elas abrigam pátios cobertos, salas de aulas, de multimídia, de arte, de música, sala de luz e sombra, sala de faz de conta, auditório, laboratório de informática e biblioteca. As casas foram sendo construídas à medida que a escola foi crescendo e passando a atender não somente a Educação Infantil (antes chamada Maternal e Jardins de Infância), mas também a primeira etapa do ensino Fundamental, que vai do 1º ao 5º ano (desde 2002). O espaço interno de cada sala é pensado de modo a favorecer a organização de cantinhos, de jogos, brinquedos, livros, faz de conta (escritório, casinha, salão de beleza, mercado…). A maioria das salas conta com “decks” de madeira onde diversas propostas de brincadeiras e atividades acontecem ao longo da rotina diária e nos quais crianças de turmas diferentes podem brincar, o que permite uma convivência e uma interação maior com outras crianças para além de seu grupo.
As áreas externas são arborizadas, vastas e repletas de brinquedos fabricados com materiais alternativos e recicláveis. As crianças dispõem de uma diversidade de terrenos para circular, brincar e experimentar o espaço: gramado, areia, pedrinhas, calçadas diversas, o que amplia e diversifica as possibilidades de brincadeiras e interação com o ambiente e com o outro.
Circuitos diversos nos pátios externos
As brincadeiras acontecem nesses espaços e a utilização deles ocorre diariamente e mediante rodízios entre as turmas, para que todos possam sempre estar em um local diferenciado e assim vivenciar as possibilidades que cada ambiente suscita e que as professoras propõem. Brincar nas árvores, colher frutas e folhas que caem no chão, correr no pátio de pedrinhas, confeccionar “bolos de aniversário” na areia e brincar de cantar os “parabéns para você”, encher e esvaziar potes de areia, pedrinhas ou água, transportar de um para outro, dar banho de banheira nas bonecas, ir para o gramado brincar de ciranda, passa-anel, lenço-atrás, subir no escorregador pela escada de pneus, brincar na ponte de madeira, brincar de casinha na casa bonecas ou nos labirintos de tecidos do pátio coberto ou aberto… são tantas as possibilidades!
Os pátios por si só já oferecem muitos desafios viso-motores, cognitivos, subjetivos e que mexem com a imaginação das crianças, mas acreditamos que sempre é possível acrescentar uma variável, um desafio a mais. Alguns exemplos: brincar de areia dentro de uma cabana de tecidos, percorrer circuitos em bancos, cordas, escadas, pneus, túneis de tecidos, elásticos etc. atravessando obstáculos para “chegar à casa da vovó” ou para “fugir do Seu Lobo”. Nessas propostas as crianças experimentam de forma lúdica conceitos como: dentro, fora, alto, baixo, estreito, largo, rápido, devagar, subir, abaixar…
Brincadeiras com desafios motores em diferentes pátios: túneis com manilhas de concreto, circuito com elástico amarrado em árvores, ponte semi-móvel, escorregador com escada de pneus, respectivamente.
Simples caixas de papelão transformam-se em barcos, em carros, em aviões, em casas e possibilitam inúmeras brincadeiras no espaço externo da escola, ora propostas pela professora ora regidas pela inventividade própria das crianças. A alternância entre brincadeiras mais dirigidas e outras menos visa justamente oportunizar a elas experimentar diversos papéis e funções dentro do jogo simbólico (que só espontaneamente talvez não surgissem), aprender as regras de brincadeiras para depois utilizá-las em seus jogos livres e aprender a criar outras regras, inventando e reinventando suas brincadeiras, ocupando o espaço de diferentes formas.
“Agora eu era o rei Era o bedel e era também juiz e pela minha lei A gente era obrigado a ser feliz E você era a princesa Que eu fiz coroar E era tão linda de se admirar…” (Chico Buarque)
Fica claro, portanto, que na Trilhas o brincar é levado à sério, uma vez que:
Para as crianças, a brincadeira é uma forma privilegiada de interação com outros sujeitos, adultos e crianças, e com os objetos e a natureza à sua volta. Brincando, elas se apropriam criativamente de formas de ação social tipicamente humanas e de práticas sociais específicas dos grupos aos quais pertencem, aprendendo sobre si mesmas e sobre o mundo em que vivem. Se entendermos que a infância é um período em que o ser humano está se constituindo culturalmente, a brincadeira assume importância fundamental como forma de participação social e como atividade que possibilita a apropriação, a ressignificação e a reelaboração da cultura pelas crianças (BORBA, 2007, p. 12).
A proximidade com uma área verde privilegiada possibilita atividades de exploração das plantas e animais do espaço. Descobrir o casulo de uma borboleta e acompanhar seu primeiro voo, encontrar um passarinho caído no chão, mexer na horta e observar as minhocas e formigas, dar milho para as galinhas, observar as cores das flores, cheirá-las, coletar e colecionar folhas caídas, fazer desenhos de observação de diferentes espécies de árvores1 são algumas atividades que despertam nas crianças um olhar mais sensível para o meio ambiente e ajudam a construir a noção de pertencimento a este ambiente. A escolha de um espaço como esse deita suas raízes em todo um projeto de Educação Ambiental, Humano, Filosófico e Estético que é levado a cabo por meio de diferentes projetos, tais como o Projeto Nome de Turma/Trilhas Sonoras, em que as turmas elegem os nomes que as identificarão como turma a cada ano letivo a partir de temas voltados para a Educação Ambiental.
Desses nomes e estudos das turmas, nascem canções que irão embalar boa parte do ano, trazendo à tona a visão poética das crianças em relação ao tema, suas hipóteses e conhecimentos construídos durante as pesquisas. Turma das Bromélias, do Pôr-do-Sol, das Quatro Estações, do Logo Guará, do Cavalo-marinho, do Bosque, das Abelhas, da Horta são alguns nomes de turmas que nasceram e frutificaram nesse grande quintal da escola! Outras práticas como o uso de materiais coletivos e, em boa parte, recicláveis, também são uma premissa da instituição, que acredita na responsabilidade de cada cidadão em relação às escolhas que impactarão a vida de todos os habitantes do planeta Terra. Ademais, o aprender a compartilhar materiais e cuidar do que é de todos alicerçam essa prática.
O trabalho estético da escola é explorado nos diferentes espaços internos e externos e acontece diariamente através dos ateliês de arte realizados pelas turmas. A escola é repleta de obras de artes por todos os cantos, em todas as salas há reproduções de obras ou releituras destas feitas pelas crianças. Não há desenhos estereotipados nas paredes ou de personagens de desenhos animados. A intencionalidade desse trabalho é desenvolver um senso estético de alto valor cultural (diferente do senso estético presente na mídia de massa…), estimular a capacidade criadora dos alunos e valorizar a produção de trabalhos artísticos individuais e coletivos. Semanalmente, as turmas elegem obras de um determinado artista plástico para serem observadas, discutidas e apreciadas e, posteriormente, fazem releituras dessas obras através de variadas técnicas, que envolvem, por vezes, elementos do bosque da escola, tintas produzidas a partir de plantas, de terra, argila etc., outras vezes modelagem com argila, folhas, flores secas e pinturas em diferentes suportes como plásticos, vidros, papéis. Essa diversidade toda produz sensações e resultados diferenciados, ampliando o leque experimental, sensorial e estético das crianças.
“Cada uma das linguagens que permeiam o trabalho da educação infantil tem seu conjunto de regras e princípios de funcionamento próprios. Portanto, elas são diferentes umas das outras, requerendo investimento diferenciado para serem apropriadas por crianças e professores.” (JUNQUEIRA FILHO)
Para concluir, voltamos à questão discutida por Frago em relação à conformação dos espaços (e dos tempos) a certos modos de pensar a educação. Cremos ser possível perceber, pelo pouco que apresentamos aqui, que concebemos a criança como um ser em formação que necessita crescer em um ambiente estimulante e desafiador, sendo sistematicamente convidado a resolver situações-problemas neste ambiente, sempre por meio de atividades lúdicas que proporcionem a vivência de variadas linguagens e da inventividade a partir de um mergulho em diversas referências artísticas e culturais. Diferentemente de outras escolas para crianças pequenas, todas de concreto e plástico altamente preocupadas em alfabetizar precocemente as crianças, acreditamos que a criança merece um espaço como esse, rico em possibilidades, próximo da natureza, planejado (e reinventado) constantemente para provocar e estimular mais percepções, elaborações e experiências necessárias a cada etapa da sua vida, primando por valorizar os saberes e o aprendizado de cada um e por promover a vivência da pluralidade e a das diferenças. Em nossa Educação Infantil, o brincar ganha lugar de destaque, pois a criança se constitui por meio da brincadeira, aprende brincando, brinca aprendendo, simples assim! Simples, mas nem por isso menos exigente, pois o planejamento de uma rotina semanal de alunos dessa etapa demanda da equipe pedagógica uma formação de alta qualidade, bagagem cultural e humana alargadas e uma sensibilidade ímpar. Não é à toa que a escola se dedica à formação contínua de seus professores e a um estado perene de repensar-se, de reinventar-se com vistas a acurar seu olhar e escuta em relação à educação dessa infância, sempre considerando a sua alteridade, nas palavras de Jorge Larrosa:
A alteridade da infância é algo muito mais radical: nada mais, nada menos que sua absoluta heterogeneidade em relação a nós e ao nosso mundo, sua absoluta diferença. E se a presença enigmática da infância é a presença de algo radical e irredutivelmente outro, ter-se-á de pensá-la na medida em que nos escapa: na medida em que inquieta o que sabemos (e inquieta a soberba da nossa vontade de saber), na medida em que suspende o que podemos (e a arrogância da nossa vontade de poder) e na medida em que coloca em questão os lugares que construímos para ela (e a presunção da nossa vontade de abarcá-la). Aí está a vertigem: no como a alteridade da infância nos leva a uma região em que não comandam as medidas de nosso saber e de nosso poder (LARROSA, 1998, p.232).
Por isso nossa busca inquieta por espaços que possam servir de porto para diferentes viagens e para a conquista de outras terras, outras paisagens para além das que conhecemos.
REFERÊNCIAS
ESCOLA TRILHAS. Projeto-político-pedagógico.
BORBA, A. M. A brincadeira como experiência de cultura na educação infantil. Revista Criança do Professor de Educação Infantil, n. 44, p. 12-14, nov. 2007.
LARROSA, J. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Porto Alegre: Contrabando, 1998.
VIÑAO FRAGO, Antonio. El spacio y El Tiempo Escolares como Objeto Histórico. In: Contemporaneidade e Educação. Ano V, n.o 7. 1.o sem/2000, p 93-110.
______. Fracasan las reformas educativas? La respuesta de um historiador. Estudo dois. In: Educação no Brasil: História e Historiografia. SBHE. Autores Associados, 2001.
JUNQUEIRA FILHO, Gabriel de Andrade. Linguagens Geradoras: Seleção e articulação de conteúdos em educação infantil. Porto Alegre: Mediação, 2005
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