Ciranda de histórias

Ciranda de histórias

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Dupla de escritores transforma narrativas de pessoas comuns em livro que celebra a arte de contar histórias

Seu Onofre morreu, mas deixou um cofre. Entre os preparativos do funeral e a abertura do baú de ferro (sim, ele deixou também a combinação) os herdeiros fremiam: o que terá dentro dele?

Há também a história do galo brabo que sabia jogar bola e era o melhor guardião da redondeza (leia trecho ao lado). Tem ainda aquela sinistra, do falecido filho do seu Fagundes, e do lobisomem que aparecia na encruzilhada. Sem contar o dia em que uma nuvem de gafanhotos deixou Guarapuava com a cara do Egito nos tempos das pragas e dos faraós.

Estes são alguns dos ”causos” que viraram contos no livro A Grande Roda de Histórias, dos escritores Nélio Spréa e Milton Karam. O livro é resultado de um trabalho simultâneo de promoção e celebração da arte das narrativas.

A coisa aconteceu assim: durante um ano, o contador de histórias Nilton Machado levou por cinquenta vezes o projeto A Grande Roda de Histórias a locais da cidade muito diferentes entre si.

Associações de bairros, hospitais, faculdades, asilos, empresas, escolas, clubes, conventos, sindicatos, clubes escoteiros, bibliotecas, clubes de mães, centros sociais de veteranos de guerra e de anônimos em drogadição.

Machado contava os seus causos e instigava os presentes a também contarem as suas histórias. Mais de cem relatos foram gravados. Destas, doze foram selecionadas pelos autores do livro para serem transformadas em contos.

“O resultado não é bem uma edição, e sim uma recriação a partir do mote central do depoimento. Nós desenvolvemos as histórias a partir do mote, da sacada, do ‘pulo do gato’ de cada uma das narrativas”, explica Spréa.

Para Karam, o livro cumpre com o papel de chamar a atenção para o valor das histórias cotidianas. Com belas ilustrações de Katia Horn, cada um dos contos tem argumentos centrais muito diversos que refletem a diversidade dos depoentes.

“São histórias de toda ordem. Pessoais, ouvidas de antepassados, lendas, mitos, algumas fantasiosas e outras bem reais. O que vale é a história, a vida é feita disso. Somos todos contadores”, disse.

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A diversidade de vozes também se nota na linguagem. Os textos mantêm a graça da palavra falada das pessoas que contaram suas histórias. “Sempre que possível tentamos manter o sotaque e a construção da linguagem original, tentamos reproduzir a ‘música’ daquela contação”, observa Spréa.

Para ele, há a necessidade ancestral e nunca satisfeita em contar e ouvir histórias. “Tem relação com a necessidade de construção da identidade, uma afirmação da própria existência. Contando histórias nós materializamos uma ideia sobre nós mesmos”, avalia.

Neste sentido, a velha arte de contar histórias seria a matéria prima das relações sociais. “A cultura é um sistema grandioso de significados dinâmicos e caóticos, cheio de símbolos e códigos. A narrativa é a ferramenta que sustenta toda a cultura – é o meio em que o conhecimento se alastra”, filosofa.

Todo o projeto do livro foi financiado através do mecenato subsidiado da Lei de Incentivo Municipal e teve patrocínio da Caixa Econômica Federal. As instituições que conviveram com a roda e pessoas que tiveram seus depoimentos transcritos receberam exemplares.

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A Grande Roda de Histórias

Nélio Spréa e Milton Karam. Parabolé, 144 págs., R$ 40. Contos.

Milton Karam é arquiteto, escritor e compositor e diretor artístico do Coral Brasileirinho. Suas composições infantis já foram gravadas em sete discos pedagógicos. Em 2013, lançou dois livros dirigidos ao público infanto-juvenil.

Nélio Spréa é musico, escritor, professor e consultor pedagógico e mestre em Educação pela UFPR com pesquisa em culturas da infância e cultura popular brasileira. É autor de dezenas de livros, filmes e discos infantis e participa de projetos culturais em instituições sócioeducativas.

“Eles tinham um galo que sabia jogar bola. O pai comprou porque o bicho era brabo, não temia cães e avançava em gente estranha. Para uma família humilde, ter um galo de guarda era um privilégio. Aviso de lugar bem guardado. E não era galo de briga. O bicho era pequeno e tinha cara de demo. Era galo de guarda mesmo. O pai dizia aos vizinhos:

–Eia, pois! Um homem prevenido vale por dois!

A mãe temia chegar perto do galinho. Logo nos primeiros dias descobriu um jeito de mantê-lo afastado da porta da cozinha. Bastava rolar uma jabuticaba, que o galo corria na mata para brincar com aquilo…”

Trecho do conto A Incrível História do Galo Que Sabia Jo­gar Bola, de Nélio Spréa.

 

Fonte: Gazeta do Povo (Caderno G).

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